sexta-feira, dezembro 29, 2006

Alcaïns - 3

O Sr. Padre Novo, que não era nada tolo, apercebeu-se rapidamente de que a religiosidade, por não seguir sempre o canon de Roma - nem, por vezes, o bom senso - não deixa de ser religiosidade, profunda e sentida. A tradição de intolerância foi mais forte. Deixou de se opor. Mas foi incapaz de participar.

quinta-feira, dezembro 28, 2006

Alcaïns - 2

A vida na Beira Interior foi sempre muito dura. Contam as pessoas mais antigas que, muitas vezes, o jantar era uma malga de feijão pequeno (o feijão frade), com um fio de azeite -se havia. E uma bucha de pão para levar para o trabalho. Ou para a escola. A professora batia. Com a régua, nas mãos inchadas pelas frieiras e geladas do frio.
Até ao surto da emigração, nos anos sessenta e setenta, passava-se fome. E no Inverno, muito, muito frio, nas casas de telha vã e chão de pedra.
Era assim, contam ainda.

Alcaïns - 1


Já lá vão alguns anos.
Havia, é claro, um padre novo na paróquia, que com ser novo também nos anos, quis modernizar os hábitos. Talvez por achar mórbida a tradição, decidiu que a capela mortuária fecharia à meia-noite. No dia seguinte, logo pela manhã, abria-se de novo, o velório dos falecidos continuaria depois de todos terem descansado.
Que tal foste fazer:
À primeira tentativa de impedir que o velório durasse a noite toda, como é devido, as senhoras ergueram o estandarte da revolta. Um grupinho de gente antiga decidiu postar-se na capela. E ai de quem as fosse de lá tirar.
Como não ficava bem à família deixar que o falecido fosse velado apenas pelo grupo, fiquei lá eu também a fazer companhia. Éramos seis, cinco senhoras e eu.
Não sei se os mortos nos podem ouvir, lá do sítio para onde migram as almas. O que sei é que toda a noite se contaram histórias, umas do volfrâmio, outras de padres, as senhoras picaram-se umas às outras e riram-se. O falecido, que era um bom conversador, havia de ter gostado de participar.
Consegui depois, de memória, desenhar quatro das minhas cinco companheiras. A quinta que me perdoe por não figurar aqui senão na recordação daquelas horas.

quarta-feira, dezembro 20, 2006

- Sim, titi.


Numa sala forrada a papel escuro, encontrámos uma senhora muito alta, muito seca, vestida de preto, com um grilhão de ouro no peito; um lenço roxo, amarrado no queixo, caía-lhe num bioco lúgubre sobre a testa; e no fundo dessa sombra, negrejavam dois óculos defumados. por trás dela, na parede, uma imagem de Nossa Senhora das Dores olhava para mim, com o peito trespassado de espadas.

- Esta é a titi - disse-me o Sr. Matias. - É necessário gostar muito da titi... É necessário dizer sempre que sim à titi!

Lentamente, a custo, ela baixou o carão chupado e esverdinhado. Eu senti um beijo vago, duma frialdade de pedra; e logo a titi recuou enojada.

- Credo, Vicência! Que horror! Acho que lhe puseram azeite no cabelo!

Assustado, com o beicinho já atremer, ergui os olhos para ela, murmurei:

- Sim, titi.

Eça de Queiroz, A Relíquia

segunda-feira, dezembro 18, 2006

"...intimidação cruel."









A fama, que pelas aldeias circunvizinhas apregoava o nome do missionário, atraíra imensa gente a escutar o sermão.
No fim de alguns minutos aparecia no púlpito a figura bem nutrida e pouco atrente do famigerado educador dos povos.
Fitou com sobranceria os ouvintes [...]
Enfim soltou o texto latino do sermão.
Seguiu-se nova pausa e principiou.
[...] As mais tétricas e pavorosas imagens adornavam o discurso.
Era o enxofre a ferver, o chumbo derretido, as caldeiras de pez, as fornalhas ardentes, inúmeras torturas, a que o menor delito, tal como um jejum mal guardado, uma confissão mal feita, uma involuntária falta à missa, uma penitência esquecida, uma oração suprimida, arriscava as almas por toda a eternidade. Para cada pecado venial uma perspectiva de tormentos sem fim. o tribunal de Deus arvorado em tribunal do Santo Ofício, onde os autos de fé, os potros, e cavaletes aguardavam os delinquentes arrastados até ali; eis o resumo da oração. A fatal e desesperadora sentença, que o poeta florentino esculpiu no pórtico do inferno, traçava-a este sobre os umbrais do tribunal do Eterno.
Na escultura do Cristo, obra rude do buril popular, mostrava o vulto de um acusador, surgindo ali a pedir vingança, e não o do redentor sublime, a implorar e prometer perdão. E tudo isto de mistura com imprecações contra as modernas instituições sociais, contra a obra do século, contra os descobrimentos, contra a ciência, contra tudo em que se descobrisse o cunho da época e que tendesse a modificar os costumes e as ideias em sentido menos favorável à propaganda reaccionária.`
À medida que a oração progredia, animava-se a voz do orador; aumentava a desordem dos gestos e refinava a selvajaria das imagens.
Ao mesmo tempo os gemidos, os soluços e os ais do auditório, e principalmente da parte feminina dele, ia crescendo em choro manifesto, em gritos e alaridos. Cedo era já um angustioso clamor em toda a igreja.
Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Hainnish Mãe

A Hainnish gosta de escrever pequenas histórias, pelo menos enquanto não tem tempo para as grandes. Por vezes, o tempo é tão pouco que só lhe resta dar aos filhos um pequenino poema. Eles decoram-no logo, divertidos e orgulhosos.
A Minha Mãe

Debaixo da cama

Tenho um lobo mau.

E no meu armário

Vive um animal.

Mas no quarto ao lado

Dorme a minha mãe

Que guarda o meu sono

Como mais ninguém.


quinta-feira, dezembro 14, 2006



O absurdo máximo é viver e morrer! Ser e não ser! A vida é um sim que significa - não! O homem exclama: sim! Os ecos respondem-lhe: não!

Erguer e deitar abaixo! Fazer e desfazer! Deus, o que há de infantil na tua Obra!

O culto do Menino Deus! Deus é o Deus Menino. Lá está num altar da minha igreja, e tem o mundo na mão. Para quê? Para brincar com ele.

A esperança desespera, o amor odeia, a razão endoudece! É o desvario infantil que vem da Origem e trespassa todas as cousas...

E a Morte? O prazer com que ela mata certas pessoas! É uma criança a esfarrapar uma boneca.

A Criação é uma obra infantil, porque Deus é o Deus Menino. O velho barbudo de Israel é um pesadelo do Deserto.

Teixeira de Pascoaes, O Bailado,«Sombra e Pedra», VI a XI

sábado, dezembro 09, 2006

O velho, a carroça e o burro


Era uma vez um burrico, como qualquer burrico que dantes por aí andavam, de carga às costas ou a puxar pela carroça. Não tinha nome sequer, era o «arre burro», o «estupor do burro», quando não era pior.
Durante o dia carregava lenha, sacas de feijão ou de batata, seiras de azeitona. Ao fim do dia acartava com o dono adormecido, da taberna para casa. E se o dono era pesado!
Um dia, porém (tinha de haver um dia diferente, senão não havia história para contar) o burro zangou-se. Não era justo, caramba, era sempre ele quem puxava pela carroça, porque é que não havia ele, a partir de agora de ir sentado lá em cima?
E se bem o pensou, melhor o fez. Quando o dono saiu da taberna a trocar os passos e se quis apoiar à carroça, o jerico deu um passo em frente, o dono estatelou-se e ficou a dormir de borco na valeta.
'Agora é que é', disse o jerico. 'Vou fugir na carroça!'
E, libertando-se das rédeas, trepou para cima do veículo (hipomóvel, como diz o sr. Cabo da Guarda) : 'Arre burro', disse ele.
Mas, como os leitores todos já tinham previsto, a carroça não andou. E o burrico, desanimado, pensou que, bolas, não valia a pena dizer 'arre burro', porque o burro era ele. E usar o chicote, tá quieto! Não era parvo para bater em si mesmo.
'Bom, olha, o melhor mesmo é ir à pata, como sempre fui', decidiu.
E meteu os cascos ao caminho, cheirando os perfumes da noite e parando aqui e ali para tasquinhar uma ervinha.
Até hoje não voltou a casa.
Na aldeia toda a gente se ri quando vê passar o antigo dono a puxar ele próprio a carroça. Está bastante mais magro, dizem.
Moral desta história? Tem de ter uma? Então cá vai:
«Se não queres ter dono, tens de prescindir da carroça»
Feliz Natal!
Nota: Esta historinha é dedicada a todos os blogues por onde me passeio, mas muito especialmente aos autores do Blasfémias.

sexta-feira, dezembro 08, 2006

Intercidades



Intercidades
I
e
II

domingo, dezembro 03, 2006

Na senda dos utopistas

"...Na sala de aula do velho liceu a sua mesa alinhava-se numa fila lateral, havendo um espaço entre esta e a parede onde, a meia altura, se postavam as janelas amplas.
O padre Cristóvão gostava de colocar-se naquele espaço, em que a figura se lhe recortava contra a luz nas suas costas...
... ao aproximar-se o Natal, o padre Cristóvão narrava que José, vendo avolumar-se o ventre de Maria sabendo que para isso não dera causa, decidira fugir sorrateiramente de casa pela calada da noite - usava mesmo estas expressões feitas - mas eis que lhe saía oa caminho o arcanjo e o interpelava: «Ó José, o que vais fazer?» O «Ó» gritava-o o padre Cristóvão com todo o fôlego de acólito escandalizado, provocando nos alunos um riso incontido.
Era sábia, a intromissão daquele grito na narrativa. O padre tinha acabado de franquear os limites de um tabu ao reportar-se ainda que subentendidamente a uma prática sexual - naquele tempo estudava-se na Botânica o androceu e o gineceu das flores e os modos de polinização, mas na Zoologia omitia-se qualquer referência aos aparelhos reprodutores dos animais e não se falava em fecundação - por isso havia que fazer os alunos de imediato a excitação criada com o pequeno passo em terreno proíbido. Francamente, só mesmo um padre se podia permitir falar numa aula de sexualidade humana, ainda por cima na de Maria."
Sérgio de Sousa, Na senda dos utopistas, «Blow-up», Lisboa, 2001