quinta-feira, setembro 27, 2007

A Mãe queria que ele fosse canteiro

Mas deu-lhe Deus outro destino.

Disclaimer, ou coisa assim: este grunho aqui de cima não é nenhum engenheiro, por isso escusam de se pôr com ideias.

sexta-feira, setembro 21, 2007

O Cão que jogava xadrez XX

Lembra-se a minha gentil Senhorinha e lembram-se, talvez, as nobres Damas e os generosos Cavaleiros que nos lêem: quando as grandes desgraças da minha vida ocorreram, o Carlinhos, cheio de vontade de ir à casa de banho acabava de descobrir que, amarrada por um pedaço de cordão à coleira, trazia uma jovenzita em trajos zero.
Não fora a presença dos matulões da Alfredo Arroja - uma escola secundária ali perto, como já devo ter dito algures, no meio desta confusão - e o seu Priminho, que, tirando uma fotografias curiosas e uns sites mais ou menos explícitos e não muito pedagógicos, sobretudo para un jovencito de pocos años, teria ficado paralizado, os olhitos arregalados, porque, permita-me a minha Senhorinha dizê-lo: um corpo feminino, seja de menina, seja de velhinha, é a mais bela coisa que Deus criou. E o fascínio desta primeira visão nunca mais terá igual, por mais anos que se viva.
Mas, desculpe-me a minha Senhorinha, receio ter-me desviado.
Com estes remédios que me fazem o maior bem, devo dizê-lo, perco-me com alguma facilidade e a minha orientação espacial deixa um bocadinho a desejar. Suponho que... bom, peço perdão, já não sei bem o que é que eu supunha, pero me escusaran.
Vamos aos factos, que é onde eu menos me perco:
Perante os olhares gulosos (e um tanto envergonhados, convenho) de lúbrica concupisciência dos jovens secundaristas, o seu primo Carlinhos despiu rápido o blusão e fez com ele uma espécie de biombo. Queria, é óbvio, enquanto as bochechas se lhe cobriam de rubor, encobrir as desnudas intimidades da Magrizela.
Os crescidos da Alfredo Arroja, esses é que não concordaram. Não que os peitinhos da chavaleca fossem assim como as mamas da Pamela Anderson, nem que os seus pelitos púbicos estivessem tosquiados à moicano. Mas era o que havia, adolescente que se preza não é esquisito, porra!
Por isso, o mais reguila, que não o maior - esse ainda não tinha acabado de rir, umas gargalhadas que mais pareciam soluços - avançou com ar de ameaça:
- Sais da frente, ó minorcas, senão ainda levas na trombeta!
O Carlinhos tentou afastar a Magrizela empurrando-a com o blusão e tudo:
-Sai o quê! - refilou ele quase a chegar à esquina, de onde, aliás, nenhum socorro era de esperar. Mas o inesperado, muito embora com uma lamentável raridade, digo eu e a minha Senhorinha perdoar-me-á, por vezes ainda acontece.

Não foi, como leitores menos prevenidos poderiam ingenuamente esperar, uma intervenção da Divina Providência. Se fosse, algo de verdadeiramente sensacional havia de acontecer. Nos filmes de guerra americanos são os marines que desembarcam, loiros e escanhoados e com óculos ray ban para esconder a bondade intrínseca dos olhos azuis. Nos de cawboys e índios é a cavalaria que chega, comandada pelo velho e heróico coronel de farta cabeleira branca e impoluta casaca azul.
Ali, o que surdiu, a assobiar, gingão e de mãos nas algibeiras, foi o Zé Nesgas.- O Zé Nesgas? - perguntam as nobres Damas, os galhardos Cavaleiros.
Vejo-os daqui a franzirem os narizes. Como se alguma divindade a querer sacar de um herói, se lembrasse de um pequenitates, magrinho que nem um espeto e asmático ainda por cima.

Mas, acreditem ou não, por maldade ou ironia do destino, quem apareceu mesmo foi o próprio Zé Nesgas e ponto final.
- Fosga-se, man! - exclamou ele. - Que merdé-éstáqui?

E sem olhar a mais, sem querer perceber sequer, atirou-se para a molhada que se tinha formado entretanto.

Ele era uma perna do Carlinhos para aqui, um nariz da Alfredo Arroja esborrachado por um oportuno joelho, os óculos pisados com um crrac de mau agoiro e, Musas ajudai-me a descrever este gloriosos lance: que pensa a minha Senhorinha e que pensais vós, Damas e Cavaleiros, que terá feito a Magrizela?

Ora! Vieram-lhe ao de cima aqueles ímpetos caninos a que o delicioso aroma da adrenalina faz apelo e, com os beiços recuados a deixar ver uns dentitos brancos, rosnou um surdo rugido e lançou-se na refrega de um só galgão. E, curioso, desobriu ela, as mãos agarravam, fechavam-se sobre as coisas, um orelha no caso, enquanto os dentes rasgavam a gola do polar do infeliz secundarista.

- Man, a gaja é maluca, fosga-se! Ajuda aqui! - gritava a vítima.

Infelizmente para ele, um dos companheiros estava ocupado a sovar o Carlinhos e o outro estava a rodopiar aos pulinhos. Não se tratava, claro, nem de uma dança folclórica, nem de alguma extemporânea manifestação de júbilo. Era o Zé Nesgas que, se lhe agarrara de unhas e dentes à perna esquerda, as mãos fincadas no largo cinto pregueado, as pernas firmemente enganchadas à volta do joelho do grandalhão.

A coisa parecia empatada, o Carlinhos apanhava, a Magrizela mordia e o terceiro participante nesta guerra caseira não conseguia desenvencilhar-se do Zé Nesgas nem fazer-lhe grande mossa.

Foi então que o vozeirão do Deus-dos-Cães se fez ouvir:

- Não chega ainda, ó seus pamonhas?
Por mais de uns quantos segundos, até que a autoridade daquela voz penetrasse nas consciências dos lutadores, a molhada persistiu.
Mas já cansados, cada um afrouxou a presa e acharam-se os seis, arrojanos e amigos do seu Primo Carlinhos, sentados no passeio, exaustos, a respirar com força e a desentupir os narizes com esforçadas fungadelas.
Anúbis, o Deus-Chacal, empoleirado no tejadilho de uma Renault Trafic, olhava-os de cima para baixo, com desprezo.
- Seus xondranhecos! Bibicrichos! Não têm um grama de vergonha nessas trombas, seus futucas?
Ninguém lhe respondeu. A Magrizela porque ainda não conseguia descerrar os dentes. E os outros porque, esgotada a fúria inicial, já nem sabiam bem porque é que tinha começado a badérnia.
- Se haviam de lutar por mim, que sou a liberdade, a igualdade, a fraternidade e essas merdas todas, vocês, seus bardões, andam é à estalada uns com os outros. Não têm vergonha nessas trombas, ó parranas da porra?
Com as orelhas em pé, agigantava-se de tal modo que fazia lembrar a esfinge de Gizé.
Os alunos da Alfredo Arroja e o Zé Nesgas, que nunca tinham visto o Deus-dos-Cães e, diga-se, nem faziam ideia de que tal entidade pudesse existir, ainda recalcitraram qualquer coisa, mas pouca.
- Você tem alguma coisa com isto? - atirou o maior, a esfregar a orelha que a Magrizela tinha tentado arrancar.
Anúbis agigantou-se, os caninos subitamente a brilhar:
- E tu, queres levar um pão na tromba?
Não queria.
Os outros dois agarraram-no e deram-lhe a desculpa para basar sem perder a dignidade.
- Larguem-me! - dizia ele ainda enquanto os outros dois o levavam. - Aquele filho da...
Os impropérios perderam-se para lá da esquina.
Exaustos, mas triunfantes, os restantes contendores, ainda sentados no chão e a Magrizela pudicamente tapada pelo blusão do Carlinhos, olhavam para o Deus-dos-Cães.
- E agora? - perguntava Ele. - Que é que tu vais fazer?
Mas a resposta e, mais, a discussão que ela causou, só amanhã ou depois vou poder escrevê-la aqui para a minha Senhorinha.
É que está na hora da injeção e, pouco cristãmente, convenho, a enfermeira Rosinha que está hoje de serviço, não perdoa.

quarta-feira, setembro 12, 2007

Aniversário da Hainnish

A Hainnish, do "http://historiaseoutrosescritos.blogspot.com/" faz anos hoje.
Não se diz quantos, claro, porque de uma Senhora não se fala, nem para dizer bem. Mas não são tantos como isso.

Devia ter mais tempo para escrever. Infelizmente não fomos nós quem fez este mundo. Resta-nos a consolação de que, atrás do tempo, o que há-de vir, senão mais tempo ainda?

terça-feira, setembro 11, 2007

O Cão que jogava xadrez XIX

Há quanto tempo, Senhorinha, aqui não venho!
Quantos e quantos dias passaram sem que eu me pudesse escapar até à secretaria, o seu Primo Carlinhos e a Magrizela a contas com os crescidos da Alfredo Arroja e eu lá em baixo, numa caverna escura, ausente até de mim, atado à inapelável opinião dos doutores.
Tudo começou com uma simplicidade tão grande e tão simples, num dia gorduroso como tantos outros, com um céu baixo de trovoada, e a enfermeira Rosa, com a sua túnica branca engomada, sem uma mancha, sem uma prega!
Que diferença!
Ela imaculada, cheirando a alfazema, num passo decidido, as sapatilhas com um levíssimo "ssss" a descolar do chão de ladrilho e os copinhos com as nossas drageias a tilintarem no tabuleirinho.
Nós sebosos, suados das noites sem refrigério, barbas por fazer, cabelos empastados, com a consciência dos nossos corpos, machos e imundos, e a enfermeira Rosa, grácil, clestial e perfumada, carinhosa e doce.
- Então - ronronava ela de cama em cama - dormimos bem hoje?
E bajuladores uns, taciturnos outros, lá fomos respondendo, consoante a noite melhor ou pior dormida.
E eu, como a minha Senhorinha talvez já não recorde, andava a dormir muito pouco porque vinha para aqui, no escuro da noite, com a lanterna e o carregador de pilhas o qual, como recorda, não era o neto da idosa senhora da Loja dos Trezentos.
Ao menos através deste teclado, dizia-me eu a mim mesmo, podia estar todos os dias, nem que fosse muito pouco, com a minha gentil Senhorinha.
E nessa fatídica manhã, quando a celestial enfermeira Rosinha se aproximou da minha tarimba, eu, mal acordado, quis levantar-me para tomar os remédios e zás!
O carregador de pilhas que pesava que nem chumbo e eu, no meu cansaço, não disfarçara suficientemente bem, caiu direitinho no pé da enfermeira.
Ainda se fosse uma patorra calçada de Doc Martens! Mas qual! Era um pezinho mimoso, dentro de um sapatinho higiénico de lona branca. O carregador, que era de ferro fundido, com um espigão, uma roda e um pedal, parece que lhe acertou de quina, em cheio no dedo médio do pé direito. O tabuleirinho voou com uma espécie de arco-íris de comprimidos coloridos e ela gritou. Mas gritou mesmo.
Foi um berro rasgado, sem nada da suavidade vaporosa da enfermeira Rosa; pareceu-se mais com o barrido de uma Mãe elefante a quem acabam de roubar o bebé de três toneladas.
E se estes tectos abobadados fazem eco!
A minha Senhorinha e as nobres Damas que eventualmente ainda por aqui passem, adivinham facilmente o que se passou e depois.
Os seguranças apareceram a correr, só depois o Chefe dos Enfermeiros e os Doutores. E toda a gente falava ao mesmo tempo, só nós, os doentes, nem piávamos, paralíticos de medo.
Apenas quando um segurança deitou a mão ao carregador de baterias e eu, delicadamente lhe disse que, com o perdão da minha Senhorinha, nenhum filho de uma hetaíra ia tocar nas minhas coisas e que eu tinha direitos constitucionais e que me queria queixar ao Provedor... Bom! Foi demais para eles.
Saltaram-me em cima como os macacos indianos sobem para o tejadilho dos combóios nas suas migrações anuais. Pareciam um cacho, pendurados uns no meu braço direito, outros na perna esquerda, até que senti no, digamos, glúteo uma picada e gritei:
- Acudam que estão a drogar-me.
Se já viram um rebanho de ovelhas paradas a olhar para o cão que lhes ladra do outro lado da cerca, sabem as nobres Damas e os valorosos Cavalheiros como me olharam os meus irmãos de camarata e de infortúnio.
Em breve me senti paralizado, atirado para o catre e amarrado com as correias de segurança. Não sei o que aconteceu depois.
É uma sensação aterrorizante.
Mil vezes desejei que me tivessem posto uma daquelas camisas de forças, a minha Senhorinha não sabe como é: uma coisa de lona, cheia de correias que nos atam os braços como se estivéssemos a abraçar-nos a nós próprios sem nos deixar livres senão as pernas...
As drogas, essas a mim, pelo menos, deixam-me o espírito livre para querer, para odiar, para a cólera. Mas o corpo, esse não nos obedece. Com um esforço inaudito, o gesto esboça-se, a mão ergue-se para logo tombar exausta, sem querer próprio.
Dizemos: penso, logo existo! Eu sou eu! Mas não é um grande consolo.
Penso, logo existo! Não creio nos meus algozes! Não. Não é um grande consolo para quem, manietado, vê partir a sua lanterna, o carregador de pilhas, todos os pequeninos tesouros que lhe davam acesso à sua Senhorinha. A própria vida.
Se vida se lhe pode chamar.
Mas, se não for isto a vida, que outra coisa poderá ser?
Agora, porém, que todos com sorrisos rasgados me acham muito melhor, a caminho da verdadeira cura desde que não deixe de tomar os comprimidos, vou ter vagares, liberdades, carinhos, favores, tudo.
Sorrio pasmado para todas as coisas, carreiros de formigas, sapos no tanque, figuras de relevo na televisão, baratas nos corredores à noite, osgas a passear pela parede atrás das buganvílias. Como é bom o mundo quando os Doutores e a enfermeira Rosinha tomam conta de nós.